A ESPIRITUALIDADE
Frei Kleiton Jesus Ribeiro, O.Carm.
O termo “espiritualidade”, apesar de muitos estudiosos atribuírem ao séc. XVII, Secodin (1993) escreve que esta não é uma descoberta moderna, pois já aparece em uma frase de Pelágio por volta de 423-429 d.C.: “age, ut in spiritualitate proficias” (“comporta-te de modo a progredires na espiritualidade”). De acordo com Secondin, o escopo do termo desta época significava “vida segundo o Espírito de Deus e progressão aberta a ulteriores realizações, segundo o Espírito de Deus” (p.12). Essa compreensão do termo se estendeu até o século IX. Do IX ao XI, a palavra espiritualidade evocava uma atividade que provinha da graça, presente no homem: indicava a “vida sobrenatural”. No século XII, a visão do termo começa a mudar, não sendo mais um termo homogêneo, mas começa a significar, assim, o sobrenatural em oposição ao material. A vida segundo o Espírito de Deus, não era compatível com as “realidades materiais, tangíveis e objetificadas” (p. 13).
Já no século XVII, ao se falar em espiritualidade, referia-se ao relacionamento afetivo do homem com Deus. Porém, no fim do referido século o termo é utilizado de forma negativa, conforme praticada pelo quietismo[1] ou fanatismo. Assim, em linhas gerais é possível dizer que este termo sofreu muitas modificações no decorrer da história, especificamente a partir do século supracitado, quando a palavra espiritualidade começou a ser utilizada em francês, para definir vida devota. A partir disso, sutilmente introduziu-se um novo sentido compreendido pelo termo spiritualitas. É por isso que para Secondin,
está provado que as línguas vernáculas empregam o termo spiritualité (em francês) a partir do século XII. No italiano, ao invés, o termo aparece no início de 1500, particularmente na obra La vita spirituale, de Frei Mariano de Florença (+ 1523), no sentido de orientamento do homem que queria se tornar “espiritual”, isto é, semelhante a Deus, fonte da “espiritualidade”. Quase contemporaneamente, a palavra aparece também na Espanha, no sentido de “doutrina espiritual” (SECONDIN, 1993, p. 13).
Essa transformação continuou até que o termo significasse um estilo de vida cristã, como a espiritualidade das Ordens religiosas, por exemplo: beneditinos, carmelitas, franciscanos, e outras.
De acordo com pseudo-Dionísio Areopagita, a espiritualidade é a vida segundo o espírito (conf. SECONDIN, 1993, p. 12.). Recordando o livro do Gênesis, em que o próprio Deus sopra o Seu Espírito no homem (cf. Gn 2, 7), dando-lhe, assim, a vida, segue-se que a espiritualidade não é a vida segundo o espírito do homem, mas a vida segundo o Espírito de Deus. Toda a busca espiritual do homem deveria ser para agir segundo esse Espírito. E é justamente isso que tenta nos ensinar a espiritualidade cristã. Pois esta não é para ser vivida em alguns momentos apenas, mas em toda uma vida moldada pelo Evangelho que tem como lei maior o amor (cf. Mc 12, 28-34). No decorrer da história cristã, foram encontradas formas diferentes de se viver o Evangelho. É nessa perspectiva que,
à volta dos grandes santos surgiram escolas especiais de religiosidade[2], que, como as cores do espectro, apontam todas para a luz pura de Deus. Cada uma salienta um aspecto originário da fé, para reabrir uma porta para o íntimo da fé e da entrega a Deus. Por exemplo, a espiritualidade franciscana realça a pobreza em espírito, a beneditina frisa o louvor de Deus e a inaciana sublinha a decisão e a vocação. Se, com o nosso estilo pessoal, nos sentirmos atraídos por uma forma de espiritualidade, ela torna-se para nós uma escola de oração (YOUCAT, 2011, p. 273).
Assim, é possível afirmar que a espiritualidade cristã é construída a partir do Evangelho, mas não de forma puramente individualista, e sim, considerando uma experiência coletiva. Seja nas comunidades eclesiais ou no integrar-se a uma forma de espiritualidade, precisa-se do outro para fazer a experiência de Deus e viver segundo o Espírito que foi dado por Ele.
Isso por que, a conversão é um caminho a ser percorrido. Um processo exigente, pois requer da parte da pessoa um encontro pessoal com o Criador. É a vida segundo o Espírito de Deus. Deus amou por primeiro o homem (cf. 1Jo 4, 19) e o criou na graça, chamando-o a participar na comunhão com Ele, manifestando o Seu amor ao enviar Jesus para que o homem continuasse a viver (cf. 1Jo 4, 9-10). É ao fazer a experiência desse amor que se reconhece o convite a participar dessa comunhão. De acordo com a Ratio Institutionis Vitae Carmelitanae,
movidos pelo Espírito Santo, escutamos a Palavra de Cristo, que é o Caminho que nos conduz à vida. Seguindo as suas pegadas, pomo-nos a caminho, confiantes no amor misericordioso de Deus, em direção ao cume do Monte Carmelo, lugar do encontro com Deus e da transformação n’Ele (CURIA GERAL DOS CARMELITAS, 2000, p.15).
A reflexão do aspecto teológico, da espiritualidade, lança luzes sobre o nosso viver, isso por que a teologia “se interessa pelo bem-estar terreno das pessoas, mas lança [também] um olhar para a realidade além, eterna, celestial. A partir dessa realidade transcendente, a teologia oferece consolo, esperança, perdão, salvação, plenitude” (Kuchenbecker 2008, p. 24). Porém, exige da pessoa uma mudança de vida, uma reorganização, uma transformação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. GORGULHO, Gilberto; STORNIOLO, Ivo;
BORRIELLO, L. et al. Dicionário de mística. São Paulo: Paulus, 2003.
CURIA GERAL DOS CARMELITAS. Ratio Instituitionis Vitae Carmelitanae (RIVC). Formação para o Carmelo: um intinerario de transformação. Roma, Comissariado Geral da Ordem do Carmo em Portugal, 2000.
HOUAISS, Antônio (1915-1999); VILLAR, Mouro de Salles (1939). Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa/ Antônio Houaiss e Mauro de Salles villar. Rio de Janeiro: objetiva, 2009.
KUCHENBECKER, Luís Carlos. Contribuições da psicologia e da teologia para o aconselhamento terapêutico de dependentes químicos em comunidades terapêuticas. Monografia (lato sensu em Dependência Química e Comunidade Terapêutica). São Bento do Sul: Faculdade Luterana de Teologia, 2008.
SECONDIN, Bruno; GOFFI, Tullo. Curso de espiritualidade: experiência, sistemática, projeção [trad. Bertilo Brod]. São Paulo: Paulinas, 1993.
_______. Un proyecto de vida. La regla del Carmelo hoy (equipo de especialistas bajo La direccion de Bruno Secondin). Ed. Paulinas. Madrid 1985.
YOUCAT. Catecismo jovem da Igreja Católica. Lisboa: Paulus, 2011.
[1]Pode-se dizer que o quietismo “entendido e designado, circunscreve-se à segunda parte do séc. XVII e primeira parte do séc. XVIII. Sua proximidade cronológica ao movimento dos ‘alumbrados’, na Espanha (sécs. XVI-XVII), e seu parentesco com ele e com outros anteriores nos obrigam a formular a questão inicial relativa à sua origem. É sabido que, a esse propósito, circulam duas teses fundamentais: a que sustenta a dependência direta, como de causa e efeito, entre as diversas manifestações históricas do ‘iluminismo místico’, e a que prefere reportar-se a uma constante histórica, segundo a qual em idênticas circunstâncias produzem-se os mesmos fenômenos, sem necessidade de influência direta e imediata. Em algumas das opiniões, salienta que o quietismo não é movimento primário e original, que traz algo radicalmente novo; é simplesmente a reedição de fórmulas e propostas anteriores, com algumas modificações próprias da época e dos lugares nos quais floresceu” (BARRIELLO, 2003, p. 903).
[2]Pode-se chamar de formas de espiritualidade. A palavra “espiritualidade”, proveniente do latim (spiritualitas), é derivada de spiritus (espírito). São traduções dos termos paulinos, respectivamente, pneumatikos e pneuma. Essas “escolas de religiosidade da igreja, impregnadas pelo Espírito Santo e forjadas a partir das múltiplas atitudes existenciais dos santos. Existem, a título de exemplo, a espiritualidade beneditina, a franciscana, a paulina, a dominicana, etc.” (YOUCAT, 2011, p. 273).